Pedro Rittner Valente
As Raízes dos Vinte Centavos
Uma leitura geográfica da ampla mobilização em torno da redução das passagens
Uma leitura geográfica da ampla mobilização em torno da redução das passagens
“Não é apenas por vinte centavos”.
Esta frase foi muito ouvida e proclamada por
aqueles que participaram dos protestos pela redução da passagem do transporte
público em São Paulo. Era quase consensual entre os manifestantes (desde os
mais aos menos envolvidos) que toda a movimentação em busca da revogação do
aumento das tarifas era apenas a expressão de algo maior. No entanto, notou-se
uma confusão (na melhor das hipóteses) sobre qual seria a base na qual toda
essa movimentação se assentou, até porque esta não se apresenta de maneira tão
evidente quanto o concreto aumento do preço das passagens. Observou-se cartazes
contra a PEC 37, contra a “cura gay”, contra a corrupção. Tratam-se de questões
importantes de serem discutidas, as quais, por outro lado, não representam a
essência da questão original do movimento. Acredito que a Geografia apresenta
imensurável contribuição para o entendimento da questão e, assim, proponho uma
breve reflexão a partir das discussões realizadas no curso de Geografia da
Metrópole.
A ideia que sustenta a nossa reflexão é a de
que o espaço urbano (o qual assenta a vida urbana) passou a ser apropriado pelo
capitalismo para efetuar a sua própria reprodução. Em outras palavras, o
processo de produção e reprodução do espaço urbano é orientado de acordo com os
interesses do capital. No atual contexto, de acordo com os interesses do
capital financeiro, principalmente. Isto decorre de uma aliança entre os
poderes econômico e político contra o social, o qual demonstrou a sua resistência
por meio das manifestações.
Grandes cidades como São Paulo apresentam
forte potencial para se tornarem pontos nodais da rede de circulação
internacional de capital. Os líderes políticos de diversas cidades competem
entre si para promover a entrada de investimentos. No entanto, ao fazê-lo,
submetem os interesses sociais aos do investidor privado, de maneira que o
espaço passa a ser reproduzido de acordo com as necessidades deste. Como
consequência, verifica-se um processo de privatização dos espaços públicos, de
promoção de políticas urbanas sem ativa participação popular, de especulação
imobiliária, entre outros. Veremos, inclusive, que produzir espaço vira um
negócio.
“Podemos dizer que se passa, até os anos 1960-1970, de
uma cidade operada pelo Estado para uma cidade construída basicamente pelo
capital imobiliário-financeiro. Parte de uma cidade mais ou menos
socializadora, relativamente baseada na produção e no trabalho, para uma
cidade-mercadoria, que cada vez mais se torna o lócus da especulação”
(CICCOLELLA, 2012, p.10).
“O sistema capitalista atual se transformou em um tipo
de capitalismo que eu denomino de capitalismo metropolitano, porque o capital
se realiza através do território urbano-metropolitano na medida em que o
capital privado surge como um ordenador territorial e define o território da
cidade, da metrópole” (CICCOLELLA, 2012, p.15).
Este processo de reprodução capitalista do
espaço urbano entra em conflito com a reprodução da vida urbana,
necessariamente. Esta seria caracterizada pelo convívio com o diferente, pelo
contato, pelas relações de vizinhança, por uma relação efetiva e uma
subjetividade com o lugar, enfim, pelo uso da cidade. Envolveria ainda uma
prática cidadã ativa, com mobilizações e discussões a respeito de temas que interessam
às pessoas de maneira a fazer com que seus interesses sejam considerados nas
políticas urbanas.
Porém, as necessidades de crescente
acumulação de capital e a cooptação do poder público frente aos seus interesses
permitiram que a lógica do capital se espraiasse pelas diversas dimensões da
vida que não apenas o universo do trabalho. Ao se reproduzir o espaço urbano
visando à reprodução do próprio sistema, também se cria um cotidiano redutor da
vida urbana. Assim, todas as dimensões da vida dos sujeitos tendem a ser
apropriadas pela sociedade capitalista de consumo. O ritmo de trabalho (tempo
linear) invade, se apropria e destrói a vida cotidiana das pessoas. O próprio
comportamento típico do ambiente de trabalho (funcionalizado, pragmático,
estritamente produtivo e que, portanto, promove um afastamento entre os
trabalhadores) também é transplantado para outros ambientes que não o de
trabalho. A colonização da vida e do espaço urbanos pelo capital, com o
consentimento do poder público, foi a solução encontrada para se resolver (ao
menos momentaneamente) a tendência à baixa da taxa de lucro.
Nas últimas décadas as políticas de
planejamento urbano (sim, elas existem) atenderam aos interesses de uma parcela
muito reduzida da população, ainda que o discurso assumido seja o de beneficiar
a todos. Um exemplo é o Arco do Futuro, promessa de campanha do atual prefeito.
A ideia que embasa o projeto é a de que com as intervenções que se promoverá na
área delimitada, serão atraídas empresas e serviços, criando empregos e,
consequentemente, beneficiando aquelas pessoas que vivem no local uma vez que
não precisarão mais gastar horas diárias se locomovendo em direção ao trabalho.
Esse projeto inclusive faz parte de um conjunto de propostas para melhorar a
mobilidade urbana. Porém, o prefeito não contou (ou não quis contar) que com
tais investimentos na área, mais trabalho se materializará ao espaço urbano e
então haverá um processo de valorização do espaço. Desta forma, é bem provável
que postos de trabalho sejam criados, uma vez que o poder público irá,
literalmente, preparar o terreno aos gostos do interesse privado, criando a
infraestrutura necessária à fluidez do capital (enquanto a produção do espaço é
pública, a apropriação é privada). Mas também é certo que aquela população que
hoje vive na área de intervenção não usufruirá destes “benefícios”, uma vez que
muitos não conseguirão se manter aí. Assim, serão expulsos em direção a áreas
ainda mais distantes do centro, onde a presença do poder público é ainda menos
ativa. Dessa forma, intensifica-se o processo de periferização, de destruição
da cidade. Isto sempre ocorre quando tais “melhorias” são realizadas.
Neste aspecto, o “novo” projeto de Fernando
Haddad em pouco difere das Operações Urbanas. Ambos promovem a gentrificação e
a segregação sócio-espacial. É nesse sentido que afirmei haver uma aliança do
econômico com o político contra o social. O poder público desvirtuou-se de seus
princípios e passou a atender aos interesses de setores da economia como o
financeiro, o imobiliário, o de construção civil, entre outros. Nota-se que as
áreas de maior investimento público e de mais intensa presença do Estado
coincidem com aquelas que se demonstram atrativas ao capital.
Como decorrência, ocorre a intensificação da
segregação sócio-espacial como uma manifestação da sociedade de classes.
Enquanto a classe média se trancafia nos condomínios fechados, os maravilhosos
equipamentos antiurbanos, os mais pobres são jorrados às áreas de periferias
pouco atrativas ao capital. Este, por sua vez, produz espaços extremamente
funcionalizados segundo a sua ótica, os quais se demonstram pouco propícios ao
desenvolvimento de articulações políticas contestatórias, pelo simples fato de
enfraquecer os contatos entre as pessoas (ainda que fisicamente possam se
manter próximas), como os condomínios fechados ou, mais especificamente, a nova
centralidade por nós visualizada presencialmente no trabalho de campo, a
marginal do rio Pinheiros. A pressão exercida pelo cotidiano afeta a todos, mas
especificamente os mais pobres, que têm que se submeter às mais longas jornadas
de trabalho e alienam muito mais tempo no deslocamento casa-trabalho-casa. O
cotidiano sufocante também dificulta uma articulação política de resistência.
Porém, segregação sócio-espacial não se reduz
às manifestações empíricas de segmentação do espaço. Tal processo se fundamenta
na propriedade privada da terra, condição indispensável para que se trate o
espaço urbano enquanto negócio. A instituição desta maneira de acesso a terra
como única tolerável permite que esta se realize enquanto mercadoria e, assim,
seja possível se apropriar monetariamente da riqueza socialmente produzida. A
propriedade privada da terra é um convite irrecusável aos detentores dos meios
de produção em ampliar seus capitais por meio da atuação na reprodução do
espaço urbano. Este será então planejado de acordo com os interesses do setor
privado, a partir de uma lógica empresarial. Quando a lógica do valor de troca
predomina sob a de uso em relação ao espaço urbano ocorre a destruição da
cidade e concomitante metropolização.
“Assim, metropolizar, deste ponto de vista, é
necessariamente destituir a cidade em metrópole, esta última, resguardaria em
si uma identidade qualitativa que estaria subordinada a uma dimensão
quantitativa.” (ALFREDO, 2003, p.45)
A destruição física da cidade implica no
abatimento dos referenciais nos quais se assenta a memória das pessoas.
Trata-se de um processo, que atende aos interesses de uma parcela reduzida da
população, destruindo o lugar e, consequentemente, a identidade das pessoas em
relação ao espaço. Assim, dissolvem-se aquelas relações de vizinhança,
convívio, contato com o diferente. A mobilização política outrora possibilitada
por esses contatos, agora se enfraquece. Instaura-se um vazio na vida das
pessoas, o qual se busca preencher pela ideologia do consumo. A metrópole se
caracteriza essencialmente por apresentar este modo de vida que é a negação da
cidade.
Nesse sentido se tornam compreensíveis certas
manifestações de destruição do patrimônio público verificadas nas
manifestações. O sujeito, ao ter seu lugar arrasado pelo autoritário processo
de reprodução do espaço segundo uma lógica capitalista, bem como ser expulso da
cidade, não mais se vê identificado nela; não mais se concebe enquanto um
possível sujeito utilizador da mesma. Não lhe faz sentido preservá-la. Ao
destruí-la, o sujeito mostra que quer outra cidade, a qual possa utilizar e com
a qual se identificar. É claro, nem todos os casos contém essa lógica, mas muitos
são por ela explicados.
Nesse cenário, a noção da cidadania se reduz
à possibilidade de inserção na sociedade de consumo capitalista. As novas
relações sociais são intermediadas pela possibilidade de consumo. Tal inversão
de valores é bastante propícia para o bom funcionamento do capitalismo, uma vez
que todo o sistema financeiro do qual falamos se assenta no setor produtivo.
Este, por sua vez, necessita do escoamento das mercadorias produzidas. A
elevação do consumo a valor máximo em nossa sociedade é essencial para que o
ciclo de reprodução do capital seja cada vez mais veloz. Por outro lado, ao
ocupar lugar de valores e práticas como o exercício da cidadania, o consumismo
também assume a função de alienar.
“Não só as práticas sociais, mas, inclusive, as
identidades dos lugares ficam sujeitas aos códigos metropolitanos. São esses
códigos os avatares dos novos valores e signos da sociedade contemporânea.”
(LENCIONI, 2003, p. 35)
A vida cotidiana é esvaziada e colonizada
pela invasão autoritária do mundo das mercadorias. Aquela identidade que
outrora as pessoas estabeleciam com o lugar é agora forjada por meio do
consumo. No entanto, aí se estabelece uma contradição. A impossibilidade do
consumo (no e do espaço) a todos indica que algo está errado. E mesmo com a
maciça campanha publicitária, a possibilidade de consumo não aniquila a vontade
da população em participar ativamente da produção da cidade. O vazio interno
produzido pelo arrasamento dos referenciais nos quais se assenta a vida das
pessoas não é plenamente preenchido pelo consumo. Dessa forma, pipocam
movimentos de resistência que contestam essa maneira a partir da qual se produz
o espaço urbano, uma maneira excludente e autoritária. A cidade não é
completamente metropolizada. Ela não morre.
Portanto, pode-se dizer que é na ordem
próxima que se manifesta a distante. O aumento do preço das tarifas evidencia a
ampliação da exclusão em relação à cidade daqueles que já sofreram (e sofrem)
com outros mecanismos de exclusão. É com o escancarado aumento da tarifa do
transporte público que se torna possível intuir que o acesso à cidade é
desigual. Que poucos são beneficiados pelas atuais práticas e planejamento
urbanos. Que cada vez mais a população de baixa renda é expulsa do lugar onde
habita e tem de se instalar em periferias ainda mais distantes. Que é a
iniciativa privada que comanda de acordo com seus interesses a reprodução do
espaço urbano. Que ao fazê-lo, destrói os referenciais de memória e identidade
nos quais se assenta a vida. Que esta é colonizada pelo capital de modo a
tender a se tornar estritamente produtiva e alienante. Que o direito à cidade
sobre o qual Lefebvre nos ensinou ainda está longe de ser atingido.
No entanto, os movimentos de resistência
verificados pontualmente em nossa história e acentuados nos últimos dias,
adquirindo uma ampla mobilização em âmbito nacional nos impedem em mergulhar em
um mar de conformismo. Tratam-se de manifestações pelo direito à cidade, pelo
seu uso improdutivo. A meu ver, tais protestos tiveram como essência a vontade
da população em dizer basta ao vertical e excludente processo de reprodução do
espaço, bem como da vida urbana, por meio de um cotidiano alienante.
Ao fazê-lo, ressignificaram o papel do espaço
público. Ruas produzidas essencialmente para permitir a fluidez do capital e
impedir a manifestação da vida foram ocupadas por dezenas de milhares de
corpos. É no espaço público que o sujeito se define enquanto cidadão,
participando ativamente dos destinos da cidade. Um movimento que começou
localmente cresceu com a incorporação de corpos, passando a se manifestar em
toda a cidade de São Paulo, em várias cidades brasileiras, chegando a
transbordar as fronteiras nacionais. Nas palavras de Neil Smith, trata-se de um
“acesso corporal como meio de saltar escalas”, possível nos espaços públicos. A
forte repressão policial ao movimento verificada no dia 13 de junho decorre
justamente da ocorrência por meio do corpo da luta contestatória à lógica
imposta.
Por tudo que refletimos no curso, percebemos
que se trata de um problema estrutural, que jamais será solucionado por
questões pontuais. A associação dos poderes político e econômico em torno da
reprodução do espaço tomada como instrumento à ampliação do capital é assentada
na propriedade privada da terra. Entretanto,
a conscientização de grande parte da população quanto sua condição de explorada
e a mobilização dela decorrente são iniciativas relevantes para que alterações
estruturais sejam realizadas.
Muito se cogitou se o incrível e veloz
crescimento em torno da redução das tarifas não seria fruto de alguma motivação
político-partidária. Não, a meu ver. O movimento cresceu dessa forma, pois a
crise da cidade afeta a todos. O estranhamento em relação a esta diante da
colonização da vida e do espaço urbano pelo capital não se restringe a um grupo
específico. O que ocorre é que cada classe é afetada de certa maneira e,
portanto, percebe a crise urbana de maneira distinta. O movimento em questão se
originou e cresceu graças à reivindicação pelo direito à cidade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALFREDO,
A. “Cidade e Metrópole, uma identidade
contraditória no processo de urbanização contemporânea”. In: CARLOS, A. F.
A.; LEMOS, A. I. G. “Dilemas Urbanos:
novas abordagens sobre a cidade.” São Paulo: Contexto, 2003.
CICCOLELLA,
P “Metrópoles
do século XXI: à procura de um pensamento urbano latino-americano”. In:
ALMEIDA, M. G.; OLIVEIRA, K. A. T.; ARRAIS, T. A. “Metrópoles teoria e pesquisa sobre a dinâmica metropolitana”.
Goiânia: Cânone Editorial, 2012.
LEFEBVRE,
H. “Direito à cidade”. São Paulo:
Centauro, 200. Trad.:Rubens Eduardo Frias.
LENCIONI,
S. “Uma nova determinação do urbano: o
desenvolvimento do processo de metropolização do espaço”. In: CARLOS, A. F.
A.; LEMOS, A. I. G. “Dilemas Urbanos:
novas abordagens sobre a cidade.” São Paulo: Contexto, 2003.
SMITH,
N. “Contornos de uma política
especializada: veículos dos sem teto e produção de escala geográfica”. In:
ARANTES, A. “O espaço da diferença.”
As notícias
veiculadas na imprensa em maio deste ano sobre indícios de corrupção por parte
de Hussain Aref Saab, ex-diretor do Aprov, revela mais uma faceta sobre as
relações estabelecidas entre o plano do político e do econômico na produção do
espaço urbano.
Durante o período de sete anos (2005-2012) em
que exerceu a função de diretor do órgão, ligado à Secretaria de Habitação
Municipal, responsável pela aprovação de edificações e empreendimentos
imobiliários de médio e grande porte da cidade de São Paulo, foi descoberto que
Aref adquiriu 106 imóveis (a maior parte em lugares valorizados da cidade de São
Paulo e muitos deles em empreendimentos residenciais de luxo de grande porte) e
acumulou um patrimônio de R$ 50 milhões.
O desencontro entre seu rendimento mensal bruto e sua evolução
patrimonial lança a suspeita de organização de um esquema de corrupção que
cobrava propina para a liberação de alvarás e aceleração e aprovações de
projetos imobiliários. O caso está sendo investigado pela Corregedoria Geral do
Município e Ministério Público do Estado.
A relação
entre forças econômicas e políticas no processo de produção da cidade não é uma
novidade. Entretanto, as formas e os conteúdos dessa relação mudam de qualidade
conforme o momento presente. Especificamente a partir desse caso e em um momento
em que os investimentos no setor imobiliário despontam com importância na
cidade de São Paulo, observa-se uma promiscuidade entre essas forças econômicas
ora dominantes e as forças políticas atuantes.
Detendo-nos a
São Paulo (o que não exclui a existência desses processos em outros locais), a
elaboração de manobras políticas para a manutenção/afirmação de interesses
particulares é comum entre os sujeitos envolvidos na produção do espaço urbano.
Destacamos aqui os empreendedores imobiliários, bem como seus representantes e
aqueles que ocupam cargos públicos que possuem seus interesses ligados a
grandes obras e empreendimentos e aos conhecidos financiamentos privados de
suas campanhas eleitorais.
É a partir
dessas articulações que se luta para o aumento dos índices de construção e
ocupação de terrenos em lugares diferentes na cidade; para a ampliação da
outorga onerosa e do direito de construir; pela realização de operações
urbanas; pela redução e questionamento de espaços voltados para habitação de
interesse social, entre outros. Um exemplo concreto é a participação do SECOVI
(Sindicato da Habitação) que acompanha de perto a elaboração e a votação de
planos diretores municipais.
Porém, o caso
que problematizamos aqui indica que nos interstícios das relações de poder, um
cargo em um órgão público estratégico se torna meio para conquista de
benefícios próprios com o consentimento de parcela do setor privado. Nesta
associação entre prefeitura e interesses do mercado imobiliário, Estado e
capital aparecem ligados tanto no plano institucional como no que podemos denominar
de pessoal, azeitando, às escuras, acordos a partir dos quais as partes
envolvidas tenham vantagens garantidas: sejam elas o recebimento de imóveis ou
as aprovações para construir. Como se fosse uma troca de favores. A suspeita de
corrupção que recai sobre Hussain Aref Saab indica como uma autoridade aglutina
aos seus interesses particulares o interesse do setor imobiliário colocando-os
a serviço próprio ao invés de lutar pelo interesse geral.
O filme Medianeiras
(2011) e a reflexão sobre a cidade e o urbano
Rafael Faleiros de Padua
O filme argentino Medianeras (2011),
de Gustavo Taretto, mostra de uma maneira bastante incisiva as abstrações que
se colocam na vida cotidiana dos moradores de grandes cidades. Através da
história de um rapaz e uma moça jovens, que moram próximos, cada um restrito a
uma vida cotidiana solitária e a seu pequeno apartamento em Buenos Aires , o filme
faz uma reflexão sobre a arquitetura e a cidade, mostrando o descompasso entre
a fruição da cidade e as formas espaciais cada vez mais produtoras de
isolamento e solidão, ancorados em possibilidades técnicas do momento atual
(trabalho por internet, encontros virtuais, etc.). Mas ao mesmo tempo em que
mostra a degradação das pessoas diante das impossibilidades de
compartilhamento, de sociabilidades concretas, apresenta possibilidades
concretas de apropriação, pois mesmo na mesmice modorrenta do cotidiano, na
tonalidade monótona do cotidiano, o encontro ainda pode se realizar porque há o
irredutível do corpo na cidade, a necessidade do outro como fundamento da
humanidade. Fundamentos de humanidades que a abstração da arquitetura e do
planejamento não capturou totalmente, ainda há algo de cíclico na cidade. No
filme as estações do ano são divisões temporais, contraponto à mesmice do
cotidiano, que mesmo quando a estação natural se modifica, continua na
repetição que constrange as possibilidades de encontros realmente concretos que
subvertam a solidão. Mas está sempre colocada a angústia dos personagens,
indivíduos indiferenciados da metrópole, que buscam formas de sair do cotidiano
repetitivo e solitário, continuando a viver a mesmice, e mesmo morando
solitariamente em seus pequenos apartamentos, mostram que ainda há possibilidades
de subversão no cotidiano.
No urbano se espacializam o tempo linear da produção, da circulação e do
consumo, ou seja, o tempo do cotidiano programado para fins determinados,
aqueles da reprodução social. Ao mesmo tempo se realiza, ainda que residualmente,
o tempo-duração intrínseco ao tempo natural e humano, como crítica e condição
de superação do tempo-sistema. As questões tratadas nesse filme nos permitem
refletir a problemática urbana e pensar na crise urbana na qual vivemos hoje. A
cidade é tomada e produzida cada vez mais como uma grande possibilidade de
negócio, onde as finalidades hegemônicas produzem espaços segregados que
produzem mais segregação. Ou seja, afasta cada vez mais as pessoas umas das
outras. No entanto a irredutibilidade do corpo se faz presente e a busca do
outro revela que o urbano ainda é o lugar do encontro.
segunda contribuição
Nada de (MUITO) novo sobre o solo da urbanização imobiliária
Mais
um “megacomplexo”, mais um “megaempreendimento”, mais um “megaespaço”, mais um
“complexo multiuso”, é lançado em São Paulo. Onde ? Na Marginal Pinheiros. A notícia
de que a Odebrecht Realizações
Imobiliárias (OR) começará em 2013 a erguer “o maior
empreendimento de São Paulo em área construída” (595 mil m2) não
chega a espantar. Acostumamos com as dimensões –frequentemente de alguns
quarteirões – de empreendimentos que buscam forjar o novo conceito de mix, como o Kinoplex (no Itaim), o Cidade
Jardim, o WTorre JK e agora o
mais novo Parque da Cidade,
localizados na Marginal do Pinheiros. Em comum sua localização valorizada: o
atual eixo de expansão da centralidade terciária de São Paulo. Também em comum
o fato de trazerem diversos tipos de uso: comercial, corporativo, hoteleiro,
residencial e recreativo, já que alguns deles oferecem ou estão localizados
próximos a espaços de lazer como parques, ciclovias, restaurantes, cinema.
Não
chega a ser novidade nenhuma o fato de que nesses “megaespaços” e ao redor
deles os preços disparam, eventuais favelas são pressionadas a sair, o trânsito
já complicado se torna ainda pior. Vejamos algumas características do novo empreendimento Parque da Cidade: segundo reportagem do jornal “O Estado de S.
Paulo”, sua localização será na Marginal Pinheiros na altura do Brooklin
(extensão da Av. Chucri Zaidan), serão 8 torres (entre edifícios de funções
distintas), um hotel provavelmente ocupado por uma rede internacional de alto
luxo, área de lazer com pista de cooper,
restaurantes e ciclovia. Tudo isso, informa o jornal, construído em um terreno
de 80 mil m2 e Valor Geral de Venda esperado de R$ 4 bilhões. Abaixo
um croqui sem escala do Parque da Cidade
(retirado do site http://www.estadao.com.br/
em 30/08/2012):
Na matéria do Estado de S.
Paulo nos é informado que, quando concluído, este megaempreendimento atrairá
diariamente 65 mil pessoas. Interessante notar que esses novos produtos emanam ares
“democráticos” e “sustentáveis” como jogo de marketing, a começar pelo nome Parque da Cidade, o que se reitera na fala
do diretor de incorporação da OR Saulo
Nunes (citada na reportagem do Estado): "Trata-se de um condomínio aberto
à população, sem muros, à disposição da vizinhança. (...) ele não se resume a
um empreendimento imobiliário, mas de urbanismo". Agora isso nos parece
muito importante: a capacidade (des)urbanizadora desse processo que se propõe
quase como uma urbanização imobiliária e que, na verdade, trata de dar
continuidade e consolidar a territorialização da centralidade da Marginal
Pinheiros rumo ao sul. Estes megaempreendimentos ao longo da Marginal Pinheiros
têm um papel simbólico muito pronunciado, pois eles remetem àquilo que aparece
como sendo “o mundial”, “o moderno”, “o avançado”.
A
reprodução imobiliária tem lançado mão de uma tipologia (nem tão nova assim)
que agrega num só empreendimento diferentes funções e que se pretende até um
novo “urbanismo” pela escala que possui no plano do bairro onde se instala, mas
aqui se aprofunda a fragmentação, a hierarquização e a homogeneização do espaço
na metrópole. Na verdade, megacomplexos como o Parque da Cidade representam uma das frentes atuais de operação dos
negócios imobiliários e financeiros no urbano, ao lado da produção habitacional
nas periferias e em algumas áreas do centro. São espaços que se dizem
diversificados, mas que se fundamentam no seu inverso, o homogêneo. Este espaço
do homogêneo também pode ser visto na ponta sul da Avenida Brigadeiro Faria
Lima, onde segue a construção acelerada e violenta da cidade dos negócios e
como negócio. No solo dessa cidade onde predomina a urbanização capitalista e a
lógica da produtividade do espaço há pouco espaço para as diferenças e muito
espaço para as desigualdades, o que nos chama para o necessário desafio de
transformar os espaços da cidade em solo apropriável para a vida
cotidiana.
São Paulo,Setembro de 2012primeira contribuição
1984 (George Orwell) e a reprodução do mundo moderno
Rafael Faleiros de
Padua
No seu livro autobiográfico “Milagres da Vida”, o escritor J. G. Ballard
escreve o seguinte:
“Na época [década de 1960, observação minha] eu achava, e continuo achando,
que a ficção científica era a verdadeira literatura do século XX, com vasta
influência sobre o cinema, a televisão, a publicidade e o design de consumo. A
ficção científica é hoje o único lugar onde o futuro sobrevive, assim como os
dramas de época da televisão são o único lugar onde o passado sobrevive” [1].
Está falando já de um momento em que a reprodução passa a dominar a
produção, constituindo um presente perpétuo, com a perda de espessura do tempo,
quando o espaço (e o tempo) se torna cada vez mais abstrato. Acompanhando o que
Ballard disse, uma breve discussão sobre o livro 1984[2],
de George Orwell, pode nos ajudar a compreender a abstração que envolve a
sociedade moderna e, nesse processo de abstração encontrar elementos para
pensar o momento da reprodução que nos envolve. Apesar de ser uma crítica
explícita ao socialismo real, podemos derivar a ficção de Orwell para os
desdobramentos da sociedade moderna capitalista, onde as determinações sociais
esvaziam violentamente os conteúdos concretos da humanidade, substituindo-os,
violentamente, por abstrações. Em 1984 a dominação do Estado
(personificado na figura do Grande Irmão, que vê e controla tudo) se realiza em
todos os momentos da vida. O indivíduo, mal reduzido a si próprio, vive sozinho
e é controlado na sua solidão. As relações de proximidade, imediatas entre as
pessoas são reprimidas ou então perpassadas por mediações de tal monta que
impedem o reconhecimento do outro.
Orwell expressou bem a reprodução da alienação no que chamou de
duplipensar:
“Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a
encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do
duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao
exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas
opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas;
usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crê
na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia;
esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente
no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o
próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir
conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de
hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra
“duplipensar” era necessário usar o duplipensar”[3].
É uma espécie de pensamento ambíguo, manejado ideologicamente de maneira
a iludir o conteúdo da realidade, se negando enquanto comunicação real,
enquanto mediação social concreta e afirmando o controle.
Trata-se de uma sociedade que tenta se colocar como o estágio supremo das
possibilidades históricas, na qual o tempo foi abolido (“tudo se fundia e confundia num mundo de sombras no qual, por fim, até
a data do ano se tornara incerta”[4])
e a história foi apagada e é constantemente reinventada de acordo com as
necessidades da manutenção desta sociedade abstrata do presente (“dia a dia e quase minuto a minuto o passado
era atualizado”[5]).
Inclusive a língua é reinventada para que expresse a objetividade vazia e
mistificadora desta sociedade pretensamente suprema, onde a ortodoxia (e a
abstração) das relações estava assentada no não pensar, pois em tal sociedade
de bem-estar (ideológico) não haveria a necessidade de pensar.
O indivíduo tenta subverter como pode a dominação, sobretudo tentando
desabstrair o tempo, que a todo momento é negado. Para a personagem principal,
Winston, “o passado... não apenas fora
alterado, fora efetivamente destruído”[6].
Para recuperar o tempo, resgatá-lo de sua abstração, ele escreve um diário,
fazendo um esforço imenso para superar a própria alienação, buscando, mesmo nas
ruínas de espaços da cidade, referências que o levassem a reconstituir um tempo
mais concreto.
Aqui a dominação reside no Estado, no “Grande Irmão”, mas poderíamos
derivá-la para a economia e para o Estado na sociedade moderna. Nesta sociedade
o tecido social está permeado de mistificações, e a vida se reproduz envolvida
na reprodução das abstrações. Por isso a importância da discussão sobre as
abstrações concretas, que se realizam na prática socioespacial. A dificuldade,
hoje, está em desvendarmos essas abstrações concretas em nosso cotidiano, que
ao mesmo tempo vivemos e sobre o qual refletimos. A cidade hoje se transforma
com uma velocidade acelerada, trazendo novas dificuldades para a sua
compreensão. Talvez por isso a importância de livros como 1984 ou Admirável Mundo Novo,
que, apesar de escritos há tanto tempo, nos atualiza a nossa reflexão sobre o
presente.
[1]
BALLARD, J. G.. Milagres da Vida. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.175.
[2] Um
outro belo exemplo da literatura de ficção científica, que contribui
enormemente para a compreensão do processo de abstração é o livro Admirável Mundo Novo, de Adous
Huxley.
[3]
ORWELL, George. 1984. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1972, p.36.
[4] ORWELL,
George. Idem, p.42.
[5] ORWELL,
George. Idem, p.41.
para 22/05:
ResponderExcluirLEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. pg17-32 (2. Filosofia e conhecimento cotidiano)
DEBORD, Guy. El Planeta Enfermo pg 11-39
SAFATLE, Vladimir. Amar uma idéia
Fani li essa notícia hoje e achei interessante compartilhar com todos. Segue o link
ResponderExcluirhttp://carros.uol.com.br/ultnot/2012/06/15/o-sonho-do-automovel-acabou-em-sao-paulo-diz-engenheiro.jhtm